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martes, 1 de mayo de 2007

Portugués - Saramago, Eça de Queiroz, Olivera, Ricaqrdo Ramos

CIRCUITO FECHADO (1)
Ricardo Ramos


Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma. gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos. caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, bloco de notas, espátula, pastas, caixas de entrada. de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras. esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, blocb de papel, caneta, projetor de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo. quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta. água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras. Cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, mejas. calça, cueca, pijama, chinelos. Vaso, descarga; pia, água, escova, creme dental, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.




Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"
Evangelho segundo Jesus Cristo
José Saramago


Passados meses, numa chuvosa e fria noite de inverno, um anjo entrou em casa de Maria de Nazaré, e foi o mesmo que se não tivesse entrado ninguém, pois a família assim como estava assim se deixou ficar, só Maria deu pela chegada do visitante, que nem teria podido ela dar-se por desentendida, uma vez que o anjo lhe dirigiu directamente a palavra, e foi assim, Deves saber, ó Maria, que o Senhor pôs a sua semente de mistura com a semente de José na madrugada em que concebeste pela primeira vez, e que, por conseguinte e consequência, dela, da do Senhor, e não da do teu marido, ainda que legítimo, é que foi engendrado o teu filho Jesus. Ficou Maria muito assombrada com a notícia, cuja substância, felizmente, não se perdeu na elocução confusa do anjo, e perguntou, Então Jesus é filho de mim e do Senhor, Mulher, que falta de educação, deves ter cuidado com as hierarquias, com as precedências, do Senhor e de mim é que deverias dizer, Do Senhor e de ti, Não, do Senhor e de ti, Não me baralhes a cabeça, responde-me ao que te perguntei, se Jesus é filho, Filho, o que se chama filho, é só do Senhor, tu, para o caso, não passaste de ser uma mãe portadora, Entâo, o Senhor não me escolheu, Qual quê, o Senhor ia só a passar, quem estivesse a olhar tê-lo-ia percebido pela cor do céu, mas reparou que tu e José eram gente robusta e saudável, e então, se ainda te lembras de como estas necessidades se manifestavam, apeteceu-lhe, o resultado foi, nove meses depois, Jesus, E há a certeza, o que se chame certeza, de que tenha sido mesmo a semente do Senhor que engendrou o meu primeiro filho, Bom, a questão é melindrosa, o que tu estás a pretender de mim é, sem tirar nem pôr, uma investigação de paternidade, quando a verdade é que, nestes conúbios mistos, por muitas análises, por muitos testes, por muitas contagens de glóbulos que se façam, certezas nunca as podemos ter absolutas, Pobrezinha de mim, que cheguei a imaginar, ouvindo-te, que o Senhor me havia escolhido para ser a sua esposa naquela madrugada, e afinal foi tudo obra de um acaso, tanto poderá ser que sim como poderá ser que não, digo-te até que melhor seria não teres descido aqui na Nazaré para vires deixar-me nesta dúvida, aliás, se queres que te fale com franqueza, um filho do Senhor, mesmo tendo-me a mim como mãe, dávamos por ele logo ao nascer, e quando crescesse teria, do mesmo Senhor, o porte, a figura e a palavra, ora, ainda que se diga que o amor demãe é cego, o meu filho Jesus não satisfaz as condições, Maria, o teu primeiro grande engano é julgares que eu vim cá apenas para te falar desse antigo episódio da vida sexual do Senhor, o teu segundo grande engano é pensares que a beleza e a facúndia dos homens existem à imagem e semelhança do Senhor, quando o sistema do Senhor, digo-to eu que souda casa, é ele ser sempre o contrário de como os homens o imaginam, e, aqui muito em confidência, eu até acho que o Senhor não saberia viver doutra maneira, a palavra que mais vezes lhe sai da boca não é o sim, mas o não, Sempre ouvi eu dizer que o Diabo é que é o espírito que nega, se no teu coração não deres pela diferença, nunca saberás a quem pertences, Pertenço ao Senhor, Pois é, dizes que pertences ao Senhor e caíste no terceiro e maior dos enganos, que foi o de não teres acreditado no teu filho, Em Jesus, Sim, em Jesus, nenhum dos outros viu Deus, ou alguma vez o verá, Diz-me, anjo do Senhor, é mesmo verdade que meu filho Jesus viu Deus, Sim, e, como uma criança que encontrou o seu primeiro ninho, veio a correr mostrar-to, e tu, céptica, e tu, desconfiada, disseste que não podia ser verdade, que se ninho havia estava vazio, que se ovos tinha, eram goros, e que se os não tinha, comera-os a serpente, Perdoa-me, meu anjo, por ter duvidado, Agora não sei se estás a falar comigo, ou com o teu filho, Com ele, contigo, com ambos, que posso eu fazer para emendar o mal feito, Que é que te aconselharia o teu coração de mãe, Que fosse procurá-lo, dizer-lhe que creio nele, pedir que me perdoe e volte para casa, aonde o Senhor o virá chamar, em chegando a hora, Francamente, não sei se vais a tempo, não há nada mais sensível do que um adolescente, arriscas-te a ouvir más palavras e a levar com a porta na cara, Se tal acontecer, a culpa tem-na aquele demónio que o embruxou e perdeu, nem sei como o Senhor, sendo pai, lhe consentiu tais liberdades, tanta rédea solta, De que demónio falas, Do pastor com quem o meu filho andou durante quatro anos, a governar um rebanho que ninguém sabe para que serve, Ah, o pastor, Conhece-lo, Andámos na mesma escola, E o Senhor permite que um demónio como ele perdure e prospere, Assim o exige a boa ordem do mundo, mas a última palavra será sempre a do Senhor, só não sabemos é quando a proferirá, mas vais ver que uma manhã destas acordamos e descobrimos que não há mal no mundo, e agora devo ir-me, se tens mais algumas perguntas a fazer, aproveita, Só uma, Óptimo, Para que quer o Senhor o meu filho, Teu filho é uma maneira de dizer, Aos olhos do mundo Jesus é meu filho, Para que o quer, perguntas tu, pois olha que é uma boa pergunta, sim senhor, o pior é que não sei responder-te, a questão no estado actual, é toda entre eles dois, e Jesus não creio que saiba mais doque a ti te terá dito, Disse-me que terá poder e glória depois de morrer, Dessa parte também estou informado, Mas que irá ele ter de fazer em vida para merecer as maravilhas que o Senhor lhe prometeu, Ora, ora, tu crês, ignorante mulher, que essa palavra exista aos olhos do Senhor, que possa ter algum valor e significado o que presunçosamente chamais merecimentos, em verdade não sei que é que vos julgais, quando não passais de míseros escravos da vontade absoluta de Deus, Nada mais direi, sou realmente a escrava do Senhor, cumpra-se em sim segundo a sua palavra, diz-me só, depois de todos estes meses passados, onde poderei encontrar o meu filho, Procura-o, que é a tua obrigação, ele também foi à procura da ovelha perdida, Para matá-la, Sossega, que a ti não te matará, mas tu, sim, o matarás a ele, não estando presente na hora da sua morte, Como sabes que não morrerei eu primeiro, Estou bastante próximo dos centros de decisão para sabê-lo, e agora adeus, fizeste as perguntas que querias, talvez não tenhas feito alguma que devias, mas isso é assunto que já não me diz respeito, Explica-me, Explica-te tu a ti própria. Com a última palavra, o anjo desapareceu e Maria abriu os olhos. Todos os filhos dormiam, os rapazes em dois grupos de três, Tiago, José e Judas, os mais velhos, a um canto, noutro canto os mais novos, Simão, Justo e Samuel, e com ela, uma de cada lado, como de costume Lísia e Lídia, mas os olhos de Maria, perturbados ainda pelos anúncios do anjo, arregalaram-se-lhe de repente, estarrecidos, ao ver que Lísia estava toda descomposta, praticamente nua, a túnica arregaçada por cima dos seios, e dormia profundamente, e suspirava sorrindo, com o brilho de um leve suor na testa e sobre o lábio superior, que parecia mordido de beijos. Se não fosse a certeza de ter estado ali apenas um anjo conversador, os sinais mostrados por Lísia fariam gritar e clamar que um demónio íncubo, desses que acometem maliciosamente as mulheres adormecidas, andara a fazer das suas no desprevenido corpo da donzela, enquanto a mãe se deixava distrair com a conversa, provavelmente foi sempre assim e nós que não o sabíamos, andarem estes anjos aos pares para onde quer que vão, e enquanto um, para entreter e fazer costas, se põe a contar histórias da Carochinha, o outro, calado, opera o actus nefandus, maneira de dizer, que nefando em rigor não é, tudo indicando que na vez seguinte se trocarão as funções e as posições para que não se perca, nem no sonhador nem no sonhado, o beneficioso sentido da dualidade da carne e do espírito. Maria cobriu a filha como pôde, puxando-lhe a túnica até à altura do que é impróprio estando descoberto, e, quando a teve decente, acordou-a e perguntou-lhe em voz baixa, por assim dizer à queima-roupa, Que estavas a sonhar. Apanhada de surpresa, Lísia não podia mentir, respondeu que sonhara com um anjo, mas que o anjo nada lhe dissera, apenas olhara para ela, e era um olhar tão meigo e tão doce que melhores não poderão ser os olhares no paraíso. Não te tocou, perguntou Maria, e Lísia respondeu, Ó minha mãe, os olhos não servem para isso. Sem bem saber se devia tranquilizar-se ou preocupar-se com o que se passara a seu lado, Maria, em voz ainda mais baixa, disse, Eu também sonhei com um anjo, E o teu, falou, ou também esteve calado, perguntou Lísia, inocentemente, Falou para me dizer que teu irmão Jesus dissera a verdade quando nos anunciou que tinha visto Deus, Ai, minha mãe, que mal fizemos então, não acreditamos na palavra de Jesus, e ele tão bom, que, de zangado, até podia ter levado o dinheiro do meu dote, e não o fez, Agora temos de ver como o remediaremos, Não sabemos onde está, notícias não deu, o anjo é que bem podia ter ajudado, sabem tudo, os anjos, Pois não, não ajudou, só me disse que procurássemos o teu irmão, que era esse o nosso dever, Mas, ó minha mãe, se afinal foi verdade que o mano Jesus esteve com o Senhor, então a nossa vida, daqui por diante, vai ser diferente, Diferente, talvez, mas para pior, Porquê, Se nós não acreditámos em Jesus nem na sua palavra, como esperas que os outros acreditem, com certeza não quererás que vamos aí pelas ruas e praças de Nazaré a apregoar Jesus viu o Senhor Jesus viu o Senhor, seríamos corridas à pedrada, Mas o Senhor, visto que o escolheu, nos defenderia, que somos a família, Não estejas tão certa disso, quando o Senhor fez a sua escolha, nós não estávamos lá, para o Senhor não há pais nem filhos, lembra-te de Abraão, lembra-te de Isaac, Ai, mãe, que aflição, O mais prudente, filha, é guardarmos estas coisas nos nossos corações e falarmos delas o menos possível, Então, que faremos, Amanhã mandarei Tiago e José a procurar Jesus, Mas onde, se a Galileia é imensa, e a Samaria, se para lá foi, oua Judeia, ou a Idumeia, que essa está no cabo do mundo, O mais provável é teu irmão ter ido para o mar, recorda-te do que ele nos disse quando veio, que tinha andado com uns pescadores, E não teria antes voltado para o rebanho, Esse tempo acabou, Como sabes, Dorme, que a manhã ainda vem longe, Pode ser que tornemos a sonhar com os nossos anjos, Pode ser. Se o anjo de Lísia, acaso tendo fugido à companhia do parceiro, veio habitar-lhe outra vez o sono, não se chegou a perceber, mas o anjo do anúncio, mesmo se se esqueceu de algum pormenor, não pôde voltar, porque Maria esteve sempre de olhos abertos na meia escuridão dacasa, o que sabia sobrava-lhe, o que adivinhava temia.

Saramago, José, O Evangelho segundo Jesus Cristo
Romance, 2 edição
Caminho - O campo da Palabra
Lisboa 1991, pp. 311-316



Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"

Ensaio sobre a cegueira
José Saramago


Temos que ver se há por aqui alguma pá ou alguma enxada, seja o que for que possa servir para cavar, disse o médico. Era manhã, tinham trazido com grande esforço o cadáver para a cerca interior, puseram-no no chão, entre o lixo e as folhas mortas das árvores. Agora era preciso enterrá-lo. Só a mulher do médico sabia o estado em que se encontrava o morto, a cara e o crânio rebentados pela descarga, três buracos de balas no pescoço e na região do esterno. Também sabia que em todo o edifício não havia nada com que se pudesse abrir uma cova. Percorrera toda a área que lhes tinha sido destinada e não encontrara mais que uma vara de ferro. Ajudaria, mas não era suficiente. E vira, por trás das janelas fechadas do corredor que seguia ao longo da ala reservada aos suspeitos de contágio, mais baixas deste lado da cerca, rostos atemorizados, de pessoas à espera da sua hora, do momento inevitável em que teriam de dizer às outras Ceguei, ou quando, se tivessem tentado ocultar-lhes o sucedido, as denunciasse um gesto errado, um mover de cabeça à procura duma sombra, um tropeção injustificado em quem tem olhos. Tudo isto também o sabia o médico, a frase que lançara fazia parte do disfarce combinado por ambos, a partir de agora a mulher já poderia dizer, E se pedíssemos aos soldados que nos atirassem cá para dentro uma pá, A ideia é boa, experimentemos, e todos estiveram de acordo, que sim, que era uma boa ideia, só a rapariga dos óculos escuros não pronunciou palavra sobre esta questão de enxada ou pá, todo o seu falar, por enquanto, eram lágrimas e lamentos, A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala, Será, mas este homem está morto e é preciso enterrá-lo. Foram portanto o médico e a mulher a parlamentar, a rapariga dos óculos escuros, inconsolada, disse que ia com eles. Por dor da consciência. Mal apareceram à vista, na entrada da porta, um soldado gritou-lhes, Alto, e como se temesse que a intimação verbal, ainda que enérgica, não fosse acatada, disparou um tiro para o ar. Assustados, recuaram para a protecção da sombra do átrio, por trás das madeiras grossas da porta aberta. Depois a mulher do médico avançou sozinha, donde estava podia ver os movimentos do soldado e resguardar-se a tempo, se fosse necessário, Não temos com que enterrar o morto, disse, precisamos de uma pá. Ao portão, mas do lado oposto onde o cego tinha caído, apareceu outro militar. Sargento era, mas não o de antes, Que querem, gritou, Precisamos de uma pá, ou uma enxada, Não há cá disso, ponham-se andar, Temos de enterrar o corpo, Não enterrem, deixem-no aí a apodrecer, Se o deixarmos fica a contaminar a atmosfera, Pois que contamine e vos faça bom proveito, A atmosfera não está parada, tanto está aqui como vai para aí. A pertinência do argumento obrigou o militar a reflectir. Tinha vindo Substituir o outro sargento, que cegara e fora imediatamente levado para onde estavam a ser concentrados os enfermos pertencentes às forças armadas de terra. Escusado será dizer que a aviação e a marinha dispunham também, cada uma, das suas próprias instalações, mas estas de menor tamanho e importância, por serem mais reduzidos os efectivos destas armas. A mulher tem razão, reconsiderou o sargento, num caso como este não há dúvida de que todos os cuidados são poucos. Como prevenção, dois soldados, munidos de máscaras antigases, já haviam despejado sobre o sangue dois garrafões inteiros de amónia, cujos últimos vapores ainda faziam lacrimejar o pessoal e lhes picavam as mucosas da garganta e do nariz. O sargento declarou, enfim, Vou ver o que se pode arranjar, E a comida, aproveitou a mulher do médico a ocasião para recordar-lhe, A comida ainda não chegou, Só do nosso lado já há mais de cinquenta pessoas, temos fome, o que estão a mandar não chega para nada, Isso da comida não é com o exército, Alguém tem de resolver a situação, o governo comprometeu-se a alimentar-nos, Voltem lá para dentro, não quero ver ninguém nessa porta, A enxada, ainda gritou a mulher do médico, mas o sargento tinha- se ido embora. A manhã estava em meio quando se ouviu a voz do altifalante na camarata, Atenção, atenção, os internados alegraram- se, pensaram que era o anúncio da comida, mas não, tratava-se da enxada, Alguém que a venha buscar, mas nada de grupos, só sai uma pessoa, Vou eu, que já falei com eles antes, disse a mulher do médico. Logo que saiu ao patamar exterior viu a enxada. Pela posição e pela distância a que se encontrava, mais perto do portão do que da escada, devia ter sido atirada de fora, Não me posso esquecer de que estou cega, pensou a mulher do médico, Onde está, perguntou, Desce a escada, que já te irei guiando, respondeu o sargento, muito bem, agora anda na direcção em que estás, assim, assim, alto, vira-te um pouco para a direita, não, para a esquerda, menos, menos do que isso, agora em frente, se não te desviares vais dar com o nariz mesmo em cima dela, quente, a escaldar, merda, eu disse que não te desviasses, frio, frio, está a aquecer outra vez, quente, cada vez mais quente, pronto, agora dá meia volta que eu torno a guiar-te, não quero que fiques para aí como uma burra à nora, às voltas, e me venhas parar ao portão, Não estejas tão preocupado, pensou ela, irei daqui à porta em linha recta, no fim de contas tanto faz, ainda que ficasses a desconfiar de que não estou cega, a mim que me importa, não virás cá dentro buscar-me. Pôs a enxada ao ombro, como um cavador que vai ao seu trabalho, e caminhou na direcção da porta sem se desviar um passo, Nosso sargento, já viu aquilo, exclamou um dos soldados, até parece ela que tem olhos, Os cegos aprendem depressa a orientar-se, explicou, convicto, o sargento.
Foi trabalhoso abrir a cova. A terra estava dura, calcada, havia raízes a um palmo do chão. Cavaram à vez o motorista, os dois polícias e o primeiro cego. Perante a morte, o que se espera da natureza é que percam os rancores a força e o veneno, é certo que se diz que o ódio velho não cansa, e disso não faltam provas na literatura e na vida, mas isto aqui, no fundo, a bem dizer, não era ódio, e de velho nada, pois que vale o roubo de um automóvel ao lado do morto que o tinha roubado, e menos ainda no mísero estado em que se encontra, que não são precisos olhos para saber que esta cara não tem nariz nem boca. Não puderam cavar mais fundo que três palmos. Fosse o morto gordo e ter-lhe-ia ficado de fora a barriga, mas o ladrão era magro, um autêntico pau-de-virar-tripas, pior depois do jejum destes dias, a cova bastaria para dois como ele. Não houve orações. Podia-se pôr-lhe uma cruz, lembrou ainda a rapariga dos óculos escuros, foi o remorso que a fez falar, mas ninguém ali tinha notícia do que o falecido pensara em vida dessas histórias de Deus e da religião, o melhor era calar, se é que outro procedimento tem justificação perante a morte, além disso, leve-se em consideração que fazer uma cruz é muito menos fácil do que parece, sem falar do tempo que ela se iria aguentar, como todos estes cegos que não vêem onde põem os pés. Voltaram à camarata. Nos sítios mais frequentados, desde que não seja em campo aberto, como a cerca, a gente já não se perde, com um braço esticado à frente e uns dedos a mover-se como antenas de insectos chega-se a toda a parte, é mesmo provável que nos cegos mais dotados não tarde a desenvolver-se aquilo a que chamamos visão frontal. A mulher do médico, por exemplo, é extraordinário como ela consegue movimentar-se e orientar-se por este verdadeiro quebra-cabeças de salas, desvãos e corredores, como sabe virar uma esquina no ponto exacto, como pára diante de uma porta e a abre sem hesitação, como não precisa ir contando as camas até chegar à sua. Agora está sentada na cama do marido, conversa com ele, baixinho como de costume, vê-se que são pessoas de educação, e têm sempre alguma coisa para dizer um ao outro, não são o mesmo que o outro casal, o primeiro cego e a mulher, depois daquelas comovedoras efusões do reencontro quase não têm falado, é que, neles, provavelmente, tem podido mais a tristeza de agora do que o amor de antes, com o tempo hão-de habituar- se. Quem não se cansa a repetir que tem fome é o rapazito estrábico, apesar de a rapariga dos óculos escuros, praticamente, ter tirado a comida à sua boca para a dar a ele. Há muitas horas que o mocinho não pergunta pela mãe, mas decerto voltará a sentir-lhe a falta depois de ter comido, quando o corpo se encontrar liberto das brutidões egoístas que resultam da simples, porém imperiosa, necessidade de manter-se. Fosse por causa do que acontecera de madrugada, fosse por motivos alheios à nossa vontade, a verdade é que não tinham chegado a ser trazidas as caixas com a refeição da manhã. Agora está-se a aproximar a hora do almoço, é quase uma hora no relógio que a mulher do médico disfarçadamente acaba de consultar, não deverá portanto estranhar-se que a impaciência dos sucos gástricos tenha decidido uns quantos cegos, tanto desta ala como da outra, a irem esperar no átrio a chegada da comida, e isto por duas excelentes razões, a pública, de uns, porque desta maneira se ganharia tempo, a reservada, de outros, porque é sabido que quem chega primeiro melhor se serve. Ao todo, não serão menos de dez os cegos atentos ao ruído que o portão exterior fará ao ser aberto, aos passos dos soldados que hão-de trazer as abençoadas caixas. Por sua vez, temerosos de uma súbita cegueira que pudesse resultar da proximidade imediata dos cegos que esperavam no átrio, os contagiados da ala esquerda não se atreveram a sair, mas alguns deles estão a espreitar pela frincha da porta, ansiosos por que chegue a sua vez. O tempo foi passando. Cnasados de esperar, alguns cegos tinham-se sentado no chão, mais tarde dois ou três regressaram às camaratas. Foi pouco depois que se ouviu o ranger inconfundível do portão. Excitados, os cegos, atropelando-se uns aos outros, começaram a mover-se para onde, pelos sons de fora, calculavam que estava a porta, mas, de súbito, tomados por uma vaga inquietação que não iriam ter tempo de definir e explicar, pararam e logo confusamente retrocederam, enquanto começavam já a perceber-se distintamente os passos dos soldados que traziam a comida e da escolta armada que os acompanhava.


Saramago, José, Ensaio sobre a Cegueira
Romance - Caminho, O Campo da Palabra
Lisboa 1995, pp. 83-88




Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"

Até hoje (memórias de cão)
Álamo Oliveira


A manhã vai rósea, os verdes negros, o cacimbo baixo, e já todos se levantaram, deslizam pelo quartel, as mãos nos bolsos, cabeças derrubadas, olhos sem direcção. Os pássaros não estão barulhentos, quietos nas seringueiras e nas mangueiras, sem fome, uma preguiça nas asas que os retém. Chega ao quartel um ruído de pilão que não destrói o silêncio, antes o acentua com aquele ritmo lento de dobre a finados. Há um luto no coração, muito negro, muito pesado, uma dor que se quedou, contida, muito viva, que arde. O cadáver do Zé Domingos lá está na pequena capela e ali ficará por quase quarenta e oito horas, à sorte do abandono nacional. Fora embrulhado num lençol que logo manchou de sangue e ali ficou, pesadelo permanente, aflição de vómito, a todos queriam fugir. Amavam-no sem reticências. Lembravam a sua alegria ambulante, as suas anedotas frescas, contadas em barítono perfeito, preenchidas de pormenores imaginosos e hilariantes. E era amigo, amigo a tempo inteiro, daqueles que só a guerra e a miséria, fêmeas do mal, sabem gerar.
Em breve sentir-se-á o entardecer, e os homens ficarão nervosos. O próprio capitão deambula entre a capela e o abrigo onde funciona o centro de transmissões. Olham para o céu, não para rezar ou pedir um anjo, mas sim o helicóptero que trará outro caixão de chumbo para o Zé Domingos. Sabiam que o tinham perdido para sempre e era-lhes doloroso tê-lo ali a inchar, já em decomposição e enjoando por culpa do primeiro caixão que viera de Bissau. Era pequeno. Ainda tentaram quebrar-lhe as pernas para que coubesse, mas o Zé Domingos, apesar do seu cheiro a podre, protestou ainda uma última vez. Era um morto demasiadamente grande para caber na bitola feretrária do país, o país que o empurrara para a guerra e a quem cabia agora o direito de ter, pelo menos, um caixão talhado à sua medida. Mas chegou a noite e engoliu Binta com a sua enorme boca. O helicóptero já não vem. O silêncio, se possível, é agora maior. Apesar de juntos, cada um está sozinho, remetidos ao avesso, sem palavras, ruminando a solidão. "Mãe, não quero morrer aqui!", João com o aerograma sobre o tampo irregular do caixote da roupa, a vontade toda de fugir, de mentir, desfeita a última ilusão, o valor da pátria, a razão da guerra. O cadáver do Zé Domingos era a acusação suprema. Soldado morto não é herói. É apenas impecilho que se tenta enfardar depressa no primeiro caixão vazio que aparece. Fosse ele o morto e também o forçariam a caber na medida nacional de caixão. Antes morrer na ilha, de velhice ou de malzinho precoce, com direitos sagrados, o pranto dos parentes e dos amigos, morrendo talvez numa tarde de vento, outubro de nuvens negras, enroscadas, metido em caixão de pinho, pregado a número cinco, os pregos, e forrado de sarja preta com cruz branca de pano de lençol. E antes de fazerem o caixão, tirar-lhe-iam a medida para que fosse ali, muito certinho, sem sobrar nem faltar. Alguém poderia colocar uma flor, um toque de festa, uma certa alegria na viagem. Morreria por si. Só por si. E não morreria nunca como o Zé Domingos, esventrado por granada de morteiro, granada que nem trazia destino certo e que o apanhou sobre o cais enquanto gritava ao gajeiro que lhe trouxesse um mulher acesa. E ela veio atenuar o seu delírio. Só que não veio acesa e chamava-se morte.
"Mãe, não quero morrer aqui! Não quero morrer aqui! Não quero que te vão levar um telegrama untado de luto e te digam, com a tristeza falsa que qualquer sargento mal sabe disfarçar, que morri dignamente em combate, salvando a honra da pátria. Se te disserem, mãe, que fui um herói na acredites. Chora-me, mas não acredites. Porque se eu morrer aqui, foi sem querer. E hei-de ter muita pena." O aerograma estava, assim cheio de morte, daquela que se não quer porque se adora viver. João ficou quase toda a manhã na cama, morno, lasso, fastidioso. Não foi ver se o novo caixão que o helicóptero trouxe era ou não era do tamanho do Zé Domingos. Desviou-se desse momento para não dizer adeus, para não chorar. Deambulou pela margem do Cacheu, deixando que as horas derrubassem o sol, afogando-o tristemente por detrás da mata do Ohio, enquanto o Mamadu puxava para terra a sua canoa de pescar. "Manga de peixe, Mamadu?!" "Pouco nada, nosso sôrdado!", a resignação na voz, o perdão do tempo perdido, da avareza do rio. João espia o fundo da canoa, meia dúzia de peixes verdes, magricelas e de mau gosto, Mamadu despeitado, um dia inteiro de trabalho, o Cacheu cioso de seus peixes. Na sua ilha, os barcos atracavam no porto de S. Mateus gemendo e afundando de peixe, chicharros a saltar em alegre agonia. Eram pescadores danados de engenho e arte, num mar generoso de riqueza vária. Chegavam de madrugada, subiam o varadouro à força de braços, braços calcinados de sal e aguardente, fortes que nem tenazes. Peixe a monte. Os nabiças à vez, enchendo cestos e carroças e ala pela ilha fora, apregoando a fartura do mar, conduto dos mais pobres. "O Cacheu não é o Atlântico...", ri-se da sua própria ingenuidade, os pés sujos de lodo cinzento, peganhosos, um duche por fim. Na cama do seu abrigo, acosta-se à violência do seu estar na guerra, um peso na alma, o desafio sinistro do rodar sonolento dos ponteiros do relógio. A si mesmo pergunta "Porquê?" E não sabia. Retoma o aerograma que escrevera de manhã. Relê-o e rasga-o de seguida. Não discutiu consigo. A decisão foi mais o gesto, a vontade de destruir alguma coisa. Toma outro aerograma e mentirosamente escreve: "Saudosos pais e irmãos, permita Deus que ao receberm estas breves palavras se encontrem a gozar uma boa e feliz saúde. A minha vai bem, graças a Deus," o começo igual, de leitura desnecessária, uma forma de arrancar, de encher papel. Depois, puxando por um humor demoníaco que lhe aziava no estômago, diz que tem pouco para contar, que as novidades são poucas. Falará de Binta numa réstea de mentiras pegadas. Não tem de África o fascínio, pelo menos, não o sente. Bissau e Binta eram para esquecer. Poderia dizer nomes exóticos. Falar de gazelas e de cobras, tarântulas e camaleões, hipopótamos, leopardos e macacos. Impressionar de cores vivas com papagaios, íbis e pelicanos. Sugerir riquezas de mogno, pau- ferro e coqueiros. Encher a boca de sumos com caju, manga e papaia. Arrepiar cabelos com descrições de ritos estranhos, de máscaras ancestrais, tatuagens de significados obscuros, mistérios de deuses desconhecidos imprecados na paixão viril de batuques indecifráveis. Mas a pobreza das gentes era uma verdade maior, pobreza de pão visível, palpável. E lá foi escrevendo que Binta não era bem um quartel de mato, entalado no cerco alto do arame farpado, com velhos barracões de mancarra, outrora sinónimo de comércio, hoje com utilidades várias e sempre profundamente vazios. Vinham batelões rio acima, sem perigos de morteiro, carregar colheitas de amendoim, que dariam óleo nos alambiques de Bissau. Não fossem as árvores e Binta seria agora um deserto. Mas João fala de cidade bonita. Só faltam algumas montras de comércio para se ver de passeio, as ruas largas, ruído provinciano. O Cacheu tem a largura do canal entre a Terceira e S. Jorge. "Isto é só para fazerem uma ideia da sua grandeza!", os barcos a passear turistas, as mulheres de capulanas garridas, sentadas na margem do rio, gozando a sombra das palmeiras, suas bugigangas, pechisbeques de missanga e vidrilhos à venda com um sorriso de dentes brancos, e os artesãos de pau-preto com seus ídolos e duendes, amuletos eternos de bizarria e ainda as esteiras, os cestos de colmo, ao lado as estranhas e primitivas armas de guerra, catanas, lanças e machados de formato esquisito, lavrados de desenhos bíblicos quando da Bíblia nada sabem. "Manga de ronco, nosso sôrdado!...," isto não é Binta, é tão só uma ideia vaga do mercado de Bissau, uma tarde de passeio, a entrada curiosa, o cheiro acre das frutas a apodrecer ao sol. "Os pássaros são muito felizes nesta terra, têm muitas árvores para fazerem os linheiros. Quando as luzes acendem, reflectem o brilho nas águas cristalinas..." Riscou cristalinas e escreveu à frente brancas não fossem julgar que se armava em prosa. E não pensou mais nas águas lodosas do rio, o lodo das margens, a terra vermelha como que pintada de sangue, a sua esterilidade, o seu ventre oco. "Temos cafés para conversar e distrair um bocado" e nunca usavam o bar da cantina militar, onde se bebia a angústia a litro por uma garrafa de cerveja, o chão cuspido, os mosquitos a monte, as baratas gordas de bolachas, um bafio a lúpulo e álcool. "A guerra?! Que é isso?! Isto é uma zona de paz sem guerra possível. Acreditem nos comunicados oficiais que dizem que a situação na Guiné está praticamente normalizada. Mais dois ou três tiros disparados para o ar., os turras acagaçam-se e isto fica o paraíso...", ignore-se a mata do Ohio à sua frente, os ataques sucessivos na fronteira sul, o desassossego premente na érea de Nova Lamego. "Os que morrem aqui é quase sempre por desastre e por tolice...", tal e qual como o Zé Domingos que tivera o azar de ser apanhado por aquela granada de morteiro, que ninguém soube donde veio nem quem a mandou, só porque desafiou o destino dos deuses, ao grito incontido de arriba, arriba, gajeiro!, vê se avistas uma mulher acesa. "Não se aflijam por minha causa. Estou bem. Somos todos bem tratados e bem alimentados...", as salsichas tóbom a boiarem na terrina, a papa do arroz mal cozido, o almoço de há pouco. Todos os dias se sentavam à mesa com a pontualidade da fome, a mesma mistela dentro da terrina, dia- a-dia, duas vezes, há quase nove meses. "Estou muito mais gordo...", olhando os ossos do peito, mais a verdade da balança da enfermaria. Dos sessenta e oito quilos que levara para a Guiné restavam-lhe cinquenta e sete. Mandou visitas, saudades, cumprindo a praxe final da escrita epistolar. Assinou e fechou o aerograma. E viu como eram lindas as suas mentiras verdadeiras. "Nem tudo o que é oiro brilha!," cicia sibilino, na alma a inundação da paz muito podre, o mesmo sabor inexplicável do beijo de Fernando pousado na testa na sua primeira noite de guerra.
Chove e é julho, vê-se pelo calendário que tem os dias riscados um a um, a paciência posta ao serviço do tempo que se desgasta morosamente, xisto na praia, lima que lima, mais liso e redondo, mas ainda xisto e não areia, 1968, em Binta, algures no norte da Guiné, na margem do Cacheu, ponto achado na quadrícula da guerra, mandingas e balantas, a cabeça de palha. João sai do abrigo. A chuva é quente. O cacimbo vem ainda antes da noite. Sobre o abrigo, o Mastigas está sentado, as pernas cruzadas, um buda, balanta voltado para Meca, "Alá nos cubra com a sua benção...!" O Mastigas estava voltado para a mata do Ohio, os olhos vagos, perdidos no longe, pequenino e curvado, velho pirata lírico a rezar recordações. O corpo oscila, adiante e atrás, pêndulo de relógio sem horas para dizer. Indiferente à chuva, lá fica naquele movimento todo triste, as roupas coladas de agúe e não está bêbado - sente-se. João procura palavras, uma palavra, talvez mesmo um gesto, um simples ruído, para transmitir ao Mastigas. "Vai-te embora, João. Segue o teu caminho...", é o Mastigas que fala, ordena, assim se depreende da voz. Não interrompeu o balanço, não desfitou os olhos, não pronunciou um gesto. Apenas, "Vai-te embora, João...", o problema é dele, ninguém tem nada com isso e na guerra há um respeito real por todas as solidões. "Fernando, o Mastigas está em cima do abrigo...", etc., toda a gente o sabe. Desde que o Zé Domingos morreu está para ali enrodilhado, nas horas que lhe sobram. Não chora, não grita, não fala. Fez-se pêndulo de silêncio, adorador dos grandes vazios. É que eles amavam-se. Discretamente.

Oliveira, Álamo, Até hoje (memórias de cão)
Signo, Angra do Heroismo 1988, pp. 98-104


Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"

Mandarim
Eça de Queirós


Eu chamo-me Teodoro - e fui amanuense do Ministério do Reino.
Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceicão, n.o 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administracão do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente couceiro, grande tocador de viola francesa.
A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha reparticão, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas frases fáceis: "Il.mo Sr. - Tenho a honra de comunicar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, Il.mo e Ex.mo Sr. ..."
Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceicão Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussuracão das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido num lençol como ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a friccão mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo, branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos... Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:
- Ai, D. Augusta, que anjo que é!
Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. "Enguiço" era com efeito o nome que me davam na casa - por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã e corcovar. Infelizmente corcovo - do muito que verguei o espinhaço na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na reparticão, dobrando a fronte ão pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude, de resto, convém ão bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais.
Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso - como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; - mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros - quantas vezes me fizeste suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço me excluíam para sempre dessas alegrias sociais vinha-me então ferir o peito - como uma frecha que se crava num tronco e fica muito tempo vibrando!
Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um "pária". A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ão pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diário de Notícias; pelas tardes de Verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo ãos goles um café, ouvir os verbosos injuirar a Pátria... Depois, nunca fui excessivamente infeliz - porque não tenho imaginacão: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporacão de um lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ão racional, ão tangível, ão que já fora alcançado por outros no meu bairro, ão que é acessível ão bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d'hôte mastiga a bucha de pão seco à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: - pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores e comprava décimos da lotaria.
No entanto procurava distrair-me. E como as circunvoluçoes do meu cérebro me não habilitavam a compor odes, à maneira de tantos outros ão meu lado que se desforravam assim do tédio da profissão; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permitia um vício - tinha tomado o hábito discreto de comprar na Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e à noite, no meu quarto, repastava-me dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de títulos ponderosos: Galera da Inocência, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal-Deserdados... O tipo venerando, o papel amarelado com picadas de traça, a grave encadernacão freirática, a fitinha verde marcando a página - encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingénuos em letra gorda davam uma pacificacão a todo o meu ser, sensacão comparável à paz penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr da água triste...
Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado "Brecha das almas"; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:
"No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambicão de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"
Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogacão "homem mortal, tocarás tu a campainha?" parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelacão estranha - "tocarás tu a campainha?"

Queirós, Eça de, O Mandarim
Texto integral com nota introdutória
Livros de Bolso Europa-América, 222,
Publicaçoes Europa-América, Mem-Martins s.a.,
pp. 25-28



Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"

A Cidade e as Serras
Eça de Queirós


- Bela mulher... Mas ancas secas, e aposto que não tem nádegas!
No entanto o moço de loura penugem voltara à sua estranha mágoa. Não possuirmos um general com a sua espada, e um bispo com seu báculo...
- Para quê, meu caro senhor?
Ele atirou um gesto suave em que todos os seus anéis faiscaram:
- Para uma bomba de dinamite... Temos aqui um esplêndido ramalhete de flores de civilizacão, com um Grão-Duque no meio. Imagine uma bomba de dinamite, atirada da porta!... Que belo fim de ceia, num fim de século!
E como eu o considerava assombrado, ele, bebendo golos de Chateau-Yquem, declarou que hoje a única emocão, verdadeiramente fina, seria aniquilar a Civilizacão. Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra de "criar", estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de "destruir".
Desenrolou ainda outras enormidades, com um riso claro nos olhos claros. Mas eu não atendia o gentil pedante, colhido por outro cuidado - reparando que em torno, subitamente, todo o serviço estacara como no conto do Palácio Petrificado. E o prato agora devido era o peixe famoso da Dalmácia, o peixe de Sua Alteza, o peixe inspirador da festa" Jacinto, nervoso, esmagava entre os dedos uma flor. E todos os escudeiros sumidos!
Felizmente o Grão-Duque contava a história de uma caçada, nas coutadas de Sarvan, em que uma senhora, mulher de um banqueiro, saltara bruscamente do cavalo, num descampado, sem árvores. Ele e todos os caçadores pararam - e a galante senhora, lívida, com a amazona arregaçada, corre para trás de uma pedra... Mas nunca soubemos em que se ocupava a banqueira, nesse descampado, agachada atrás da pedra - porque justamente o mordomo apareceu, reluzente de suor, e balbucio uma confidência a Jacinto, que mordeu o beiço, trespassado. O Grão-Duque emudecera. Todos se entreolhavam, numa ansiedade alegre. Então o meu Príncipe, com paciência, com heroicidade, forçando palidamente o sorriso:
- Meus amigos, há uma desgraça...
Dornan pulou na cadeira: - Fogo?
Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de Sua Alteza, se desarranjara, e não se movia, encalhado!
O Grão-Duque arremessou o guardanapo. Toda a sua polidez estalava como um esmalte mal posto:
- Essa é forte!... Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear? Que estupidez! E porque o não trouxeram à mão, simplesmente? Encalhado... Quero ver! Onde é a copa?
E, furiosamente, investiu para a copa, conduzido pelo mordomo que tropeçava, vergava os ombros, ante esta esmagadora cólera de Príncipe. Jacinto seguiu, como uma sombra, levado na rajada de Sua Alteza. E eu não me contive, também me atirei para a copa, a contemplar o desastre, enquanto Dornan, batendo na coxa, clamava que se ceasse sem peixe!
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre o poço escuro do elevador, onde mergulhara uma vela que lhe avermelhava mais a face esbraseada. Espreitei, por sobre o seu ombro real. Em baixo, na treva, sobre uma larga prancha, o peixe precioso alvejava, deitado na travessa, ainda fumegando, entre rodelas de limão. Jacinto, branco como como a gravata, torturava desesperadamente a mola complicada do ascensor. Depois foi o Grão-Duque que, com os pulsos cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos cabos em que ele rolava. Debalde! O aparelho enrijara numa inércia de bronze eterno.
Sedas roçagaram à entrada da copa. Era Madame de Oriol, e atrás Madame Verghane, com os olhos a faiscar, na curiosidade daquele lance em que o Príncipe soltara tanta paixão. Marizaç nosso íntimo, surgiu também, risonho, propondo uma descida ao poço com escadas. Depois foi o Psicólogo, que se abeirou, psicologou, atribuindo intenções sagazes ao peixe que assim se recusava. E a cada um o Grão-Duque, escarlate, mostrava com dedo trágico, no fundo da cova, o seu peixe! Todos afundavam a face, murmuravam: "la está"! Todelle, na sua precipitacão, quase se despenhou. O periquito descendente de Coligny batia as asas, ganindo: - "Que cheiro ele deita, que delícia!" Na copa atulhada os decotes das senhoras roçavam a farda dos lacaios. O velho caiado de pó-de-arroz meteu o pé num balde de gelo, com um verro ferino. E o Historiador dos Duques de Anju movia por cima de todos o seu nariz bicudo e triste.
De repente, Todelle teve uma ideia:
- É muito simples... É pescar o peixe!
O Grão-Duque bateu na coxa uma palmada triunfal. Está claro! Pescar o peixe! E no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova, toda a sua cólera se sumira, de novo se tornara o Príncipe amável, de magnífica polidez, desejando que as senhoras se sentassem para assistir à pesca miraculosa! Ele mesmo seria o pescador! Nem se necessitava, para a divertida façanha, mais que uma bengala, uma guita e um gancho. Imediatamente Madame de Oriol, excitada, ofereceu um dos seus ganchos. Apinhados em volta dela, sentindo o seu perfume, o calor da sua pele, todos exaltámos a amorável dedicacão. E o Psicólogo proclamou que nunca se pescara com tão divino anzol!
Quando dois escudeiros estonteados voltaram, trazendo uma bengala e um cordel, já o Grão-Duque, radiante, vergara o gancho em anzol. Jacinto, com uma paciência lívida, erguia uma lâmpada sobre a escuridão do poço fundo. E os senhores mais graves, o Historiador, o director do Boulevard, o Conde de Trèves, o homem de cabeça à Van-Dyck, sorriam, amontoados à porta, num interesse reverente pela fantasia de Sua Alteza. Madame de Trèves, essa, examinava serenamente, com a sua nobre luneta, a instalação da copa. Só Dornan não se erguera da mesa, com os punhos cerrados sobre a toalha, o gordo pescoço encovado, no tédio sombrio de fera a quem arrancaram a posta.
No entanto Sua Alteza pescava com fervor! Mas debalde! O gancho, pouco agudo, sem presa, bamboleando na extremidade da guita frouxa, não fisgava.
- Oh, Jacinto, erga essa luz! - gritava ele, inchado e suado. - Mais!... Agora! Agora! É na guelra! Só na guelra é que o gancho o pode prender. Agora... Qual! Que diabo! Não vai!
Tirou a face do poço, refolegando e afrontado. Não era possível! Só carpinteiros, com alavancas!... E todos, ansiosamente, bradámos que se abandonasse o peixe!
O Príncipe, risonho, sacudindo as mãos, concordava que por fim "fora mais divertido pescá-lo do que comê-lo!" E o elegante bando refluiu sofregamente para a mesa, ao som de uma valsa de Strauss, que os tziganes arremessaram em arcadas de lânguido ardor. Só Madame de Trèves se demorou ainda, retendo o meu pobre Jacinto, para lhe assegurar quanto admirava o arranjo da sua copa... Oh perfeita! Que compreensão da vida, que fina inteligência do conforto!
Sua Alteza, encalmado pelo esforço, esvaziou poderosamente dois copos de Chateau-Lagrange. Todos o aclamavam como um pescador genial. E os escudeiros serviram o Barão de Pauillaç cordeiro das lezírias marinhas, que, preparado com ritos quase sagrados, toma este grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França.
Eu comi com o apetite de um herói de Homero. Sobre o meu copo e o de Dornan o champanhe cintilou e jorrou ininterrompidamente como uma fonte de Inverno. Quando se serviram ortolans gelados, que se derretiam na boca, o divino poeta murmurou, para meu regalo, o seu soneto sublime a "Santa Clara". E como, do outro lado, o moço de penugem loura insistia pela destruicão do velho mundo, também concordei, e, sorvendo champanhe coalhado em sorvete, maldissemos o Século, a Civilizacão, todos os orgulhos da Ciência! Através das flores e das luzes, no entanto, eu seguia as ondas arfantes do vasto peito de Madame Verghane, que ria como uma bacante. E nem me apiedava de Jacinto que, com a doçura de S. Jacinto sobre o cepo, esperava o fim do seu martírio e da sua festa.
Ela findou. Ainda me recordo, às três horas da noite, o Grão-Duque na antecâmara, muito vermelho, mal firme nos pés pequeninos, sem acertar com as mangas da peliça que Jacinto e eu lhe ajudámos a enfiar - convidando o meu amigo, numa efusão carinhosa, a ir caçar às suas terras da Dalmácia...
- Devo ao meu Jacinto uma bela pesca, quero que ele me deva uma bela caçada!
E enquanto o acompanhávamos, entre as alas dos escudeiros, pela vasta escada onde o mordomo o precedia erguendo um candelabro de três lumes, Sua Alteza repisava, pegajoso:
- Uma bela caçada... E também vai Fernandes! Bom Fernandes, Zé Fernandes! Ceia superior, meu Jacinto! O Barão de Pauillaç divino... Creio que o devemos nomear Duque... O Senhor Duque de Pauillac! Mais um bocado da perna do Senhor Duque de Pauillac. Ah! Ah!... Não venham fora! Não se constipem!
E do fundo do coupé, ao rodar, ainda bradou:
- O Peixe, Jacinto, desencalha o peixe! Excelente, ao almoço, frio, com um molho verde!
Trepando cansadamente os degraus, numa moleza de champanhe e sono em que os olhos se me cerravam, murmurei para o meu Príncipe:
- Foi divertido, Jacinto! Sumptuosa mulher, a Verghane! Grande pena, o elevador...
E Jacinto, num som cavo que era bocejo e rugido:
- Uma maçada! E tudo falha!


Queirós, Eça de, As Cidades e as Serras
Introducão por Carlos Reis
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses
Ulisseia, Lisboa, s.a., pp. 83-87


Tomada de "Crestomatia de Quarta (Feira) - Zelimir Brala"

A Cidade e as Serras
Eça de Queirós


Numa dessas activas semanas, porém, a minha atenção subitamente se despegou deste interessante Jacinto. Hóspede do 202, conservava no 202 a minha mala e a minha roupa; e, acostado à bandeira do meu Príncipe, ainda ocasionalmente comia do seu caldeirão sumptuoso. Mas a minha alma, a minha embrutecida alma, e o meu corpo, o meu embrutecido corpo, habitavam então na Rua do Hélder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda.
Descia eu uma tarde, numa leda paz de ideias e sensações, o Boulevard da Madalena, quando avistei, diante da Estação dos Ónibus, rondando no asfalto, num passo lento e felino, uma criatura seca, muito morena, quase tisnada, com dois fundos olhos taciturnos e tristes, e uma mata de cabelos amarelados, toda crespa e rebelde, sob o chapéu velho de plumas negras. Parei, como colhido por um repuxão nas entranhas. A criatura passou - no seu magro rondar de gata negra, sobre um beiral de telhado, ao luar de Janeiro. Dois poços fundos não luzem mais negro e taciturnamente do que luziam os seus olhos taciturnos e negros. Não recordo (Deus louvado!) como rocei o seu vestido de seda, lustroso e ensebado nas pregas; nem como lhe rosnei uma súplica por entre os dentes que rangiam; nem como subimos ambos, morosamente e mais silenciosos que condenados, para um gabinete do Café Durand, safado e morno. Diante do espelho, a criatura, com a lentidão de um rito triste, tirou o chapéu e a romeira salpicada de vidrilhos. A seda puída do corpete esgarçava nos cotovelos agudos. E os seus cabelos eram imensos, de uma dureza e espessura de juba brava, em dois tons amarelos, uns mais dourados, outros mais crestados, como a côdea de uma torta ao sair quente do forno.
Com um riso trémulo, agarrei os seus dedos compridos e frios:
- E o nomezinho, hem?
Ela séria, quase grave:
- Madame Colombe, 16, Rua do Hélder, quarto andar, porta à esquerda.
E eu (miserável Zé Fernandes!) também me senti muito sério, trespassado por uma emoção grave, como se nos envolvesse, naquela alcova do Café, a majestade de um Sacramento. À porta, empurrada levemente, o criado avançou a face nédia. Ordenei uma lagosta, pato com pimentões, e Borgonha. E foi somente ao findarmos o pato que me ergui, amarfanhando convulsivamente o guardanapo, e a tremer lhe beijei a boca, todo a tremer, num beijo profundo e terrível, em que deixei a alma, entre saliva e gosto de pimentão! Depois, numa tipóia aberta, sob um bafo mole de leste e de trovoada, subimos a Avenida dos Campos Elísios. Em frente à grade do 202 mumurei, para a deslumbrar com o meu luxo: - "Moro ali, todo o ano!..." E como ao mirar o Palacete, debruçada, ela roçara a mata fulva do pêlo crespo pela minha barba - berrei desesperadamente ao cocheiro que galopasse para a Rua do Hélder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda!
Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com Amor, com todos os Amores que estão no Amor, o Amor divino, o Amor humano, o Amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra. Era estúpida, era triste. Eu deliciosamente apagava a minha alegria na cinza da sua tristeza; e com inefável gosto afundava a minha razão na densidade da sua estupidez. Durante sete furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes - Fernandes de Noronha e Sande, de Guiães! Ora se me afigurava ser um pedaço de cera que se derretia, com horrenda delícia, num forno rubro e rugidor; ora me parecia ser uma faminta fogueria onde flamejava, estalava e se consumia um molho de galhos secos. Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã cor de lilás com sutaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, e de um corpos tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete libras que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através de um sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer.
Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da Rua do Hélder, encontrei a porta fechada - e arrancado da ombreira aquele cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta... Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho, naquele patamar do Não-ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência de uma pedra, até ao cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!
- Madame Colombe?
A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:
- Já não mora... Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!
Para outra terra! com outra porca!... Vazio, negramente vazio de todo o pensar, de todo o sentir, de todo o querer - boiei aos tombos, como um tonel vazio, na corrente açodada do Boulevard, até que encalhei num banco da Praça da Madalena, onte tapei com as mãos, a que não sentia a febre, os olhos a que não sentia o pranto! Tarde, muito tarde, quando já se cerravam com estrondo as cortinas de ferro das lojas, surdiu, de entre todas estas confusas ruínas do meu ser, a eterna sobrevivente de todas as ruínas - ideia de jantar. Penetrei no Durand, com os passos entorpecidos de um ressuscitado. E, numa recordação que me escaldava a alma, encomendei a lagosta, o pato, o Borgonha! Mas ao alargar o colarinho, ensopado pelo ardor daquela tarde de Julho, entre a poeira da Madalena, pensei com desconforot: - "Santíssimio Nome de Deus! Que imensa sede me fez esta desgraça!..." De manso acenei ao moço: - "Antes do Borgonha, uma garrafa de champanhe, com muito gelo, e um grande copo!..." Creio que aquele champanhe se engarrafara no Céu onde corre perenemente a fresca fonte da Consolação, e que na garrafa bendita que me coube penetrara, antes de arrolhada, um jorro largo dessa fonte inefável. Jesus! que transcendente regalo, o daquele nobre copo, embaciado, nevado, a espumar, a picar, num brilho de ouro! E depois, garrafa de Borgonha! E depois, garrafa de conhaque! E depois Hortelã- Pimenta granitada em gelo! E depois, um desejo arquejante de espancar, com o meu rijo marmeleiro de Guiães, a porca que fugira com outra porca! Dentro da tipóia fechada, que me transportou num galope ao 202, não sufoquei este santo impulso, e com os meus punhos serranos atirei murros retumbantes contra as almofadas, onde "via", furiosamente "via" a mata imensa de pêlo amarelo, em que a minha alma uma tarde se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se emporcalhara! Quando o fiacre estacou no 202 ainda eu espancava tão desesperadamente a besta ingrata, que, aos berros do cocheiro, dois moços acudiram e me sustiveram, recebendo pelos ombros, sobre as nucas servis, os restos cansados da minha cólera.


Queirós, Eça de, As Cidades e as Serras
Introdução por Carlos Reis,
Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, Ulisseia, Lisboa, s.a., pp. 92-95

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